quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Pedro Gonçalves e a Senha Perdida

Cascais, 14:31, Pedro Gonçalves entra no Departamento das Finanças.

Com o meu capacete numa mão, a pastinha noutra e com um autêntico atentado no lábio superior que parece um aglomerado de crostas amarelas causado pelo herpes mas não é porque eu não padeço dessa irritante doença, dirijo-me elegantemente até à simpáctica máquina de senhas do estabelecimento onde estou e preparo-me para carregar num qualquer botão: o meu conjunto de movimentos elegantes é interrompido quando me deparo com dez botões para tirar dez senhas possíveis. Páro durante cinco segundos a olhar para a máquina. Olho de esguelha para trás de mim e tenho um senhor a soprar ar da boca violentamente. Pressão, muita pressão. Por cima da máquina está um quadro que explica o fim de cada senha, mas explica da forma mais eloquente, irritante e selectiva que já vi! Ao ler na diagonal lá descubro algo parecido com o que eu queria e carrego no botão.
Num movimento simples a máquina cospe a minha nova amiga, o ser que me irá acompanhar numa espera de longos e infindáveis minutos. Pego na senha, F36, e sento-me numa das 40 ou 50 cadeiras que lá estão colocadas. A primeira impressão que temos quando olhamos para este conjunto de cadeiras com pessoas sentadas a olhar todas para o mesmo sítio é que está a ser exibido um qualquer espectáculo, mas não, as pessoas estão todas a olhar para um ecrã que mostra o número em que vai cada tipo de senha e que vai passando imagens das mais belas paisagens de Portugal. O problema disto tudo é que cada vez que um tipo de senha avança um número, ecoa pela sala inteira um barulho irritante que se eu estivesse a falar descreveria como "taranran". Ora se existem cerca de 15 funcionários para 10 tipos de senhas, e cada um desses 15 funcionários não hesitam em enviar 2 ou 3 "taranrans" cada vez que o dono da senha demora mais de 2 segundos a acusar-se, o Pedro irrita-se.

Recorro então ao meu telemóvel com MP3 e ouço "tararans" bem mais agradáveis. É então nesta altura que me sento sossegadamente e tenho oportunidade de observar todo o conteúdo interessante que aquela sala contém, enquanto vão passando pela minha cabeça as divagações mais ridículas e estapafúrdias, daquelas que quando acabam, voltamos a nós, abanamos a cabeça e percebemos que estávamos a olhar para uma parede branca.
Começo então o circo das finanças:
- seja qual for o tipo de senha que cada pessoa tenha, vai sempre achar que o tipo de senha dela é o único que não avança mesmo que esta tenha constantes "taranrans" e então fazem ar de chateados, levantam-se e dão meia-volta, esbafejam e esperneiam, cruzam e descruzam a perna, abrem os braços e olham nos olhos da pessoa do lado, franzindo o sobrolho e encolhendo os ombros à procura de um sócio para aquela insatisfação;
- há funcionários que em vez de estarem agarrados ao teclado estãol agarrados à lima das unhas;
- há um senhor que não tem vergonha de olhar com ar de predador sexual para uma senhora;
- há uma rapariga dos "Morangos Com Açucar" na sala e toda a gente a olha de alto a baixo;
- suspeito que a mesma rapariga me está a tentar engatar;
- o meu capacete cai no chão e uma todas as velhotas num raio de 2 km do epicentro da queda borram as cuecas.
- há, a partir daquele momento, uma senhora que me odeia e me lança olhares assustadores pois acabei de acordar o bebé que tanto lhe custou a adormecer.
- cada vez que alguém que acabou de entrar se dirige a um dos balcões, há sempre alguém que a persegue com os olhos, garantindo que a mesma pessoa não tenta passar à frente.
- há um senhor que está a falar de negócios com outro, mas não reparam que estão a falar em voz alta, e riem-se estupidamente de piadas que ninguém percebe. Após se aperceberem que tudo olha para eles sem se rir, recompõem-se fazem silêncio.
- há um senhor no balcão atrás de mim que está a ser atendido desde que eu cheguei. Eu cheguei à meia-hora. O senhor é gago.
Acaba o circo e volto à realidade. São 15:02. Está no F34, quando eu cheguei estava no F32. Suspiro bem fundo, levo a cabeça até perto dos joelhos e passo as mãos na minha semi-careca. Ao fazer isto, dou pela falta de algo, algo que era bem bonito, que estava nas minhas mãos, uma amiga, uma companheira... A MINHA SENHAAAA!!!!!!! Em movimentos robóticos dou chapadas em todo o meu tronco, levo as mãos à cabeça e às orelhas! O meu cérebro projecta cenários assustadores em que eu estou a implorar à mais horrenda e antipáctica funcionária para me deixar ser o F36 e ela diz um "não" com voz distorcida seguido de uma gargalhada malévola.
As minhas mãos percorrem todos os bolsos da minha roupa, há vários papelinhos com textura idêntica à da senha que me induzem em erro. Apercebo-me que a senha não está mesmo comigo. "onde raio meti a senha enquanto estava a ver o circo?"
Olho para os lados. Na cadeira do lado esquerdo tenho a minha espécie de "roulotte" que me acompanha sempre. A mala do portátil, o blusão e o capacete. Começo a vasculhar nestes três elementos, desesperado por encontrar aquele papelinho quadrado e branco! Quase que deixo cair o capacete e sou automaticamente ameaçado pela senhora com criança de colo. Termino a minha busca com o blusão por cima da cadeira o capacete no chão e a mala do portátil desfigurada. Olho para o outro lado e está uma senhora sentada, cuja cara se encaixava perfeitamente no público das "Tardes da Júlia" e que tem um sorriso cínico e escondido na cara. Observo-a com um olhar ameaçador e ela não se desmancha, olho para todo o seu corpo e não há um único detalhe suspeito, mas a sua cara transmite claramente a seguinte mensagem "otário, mal ele sabe onde está a senha".
Olho para o chão, para debaixo de todos os bancos e nada. Decido ir à estúpida da máquina outra vez e carrego na senha F... F48... Engulo em seco e guardo qualquer reacção explosiva para mim mesmo. Recrimino-me e espanco-me psicologicamente: "como é que eu fui perder a senha??" aquele bem essencial para resistir a um estabelecimento da função pública, o papelinho que eu apertava com toda a força sempre, mesmo sendo no talho, ou que guardava no bolso do casaco que tem fecho-écler e mesmo assim verificava a presença da senha de 30 em 30 segundos.
A caminho de volta para o meu lugar e a pensar no que vou fazer, na 1º fila da plateia dos "taranrans" está um papelinho quadrado, do mesmo tamanho de um senha, com letras pretas e gordas, que dizem "F36"aos pés de um dos homens negócios que falam em voz alta... páro, respiro fundo, reviro os olhos, arrepio-me e preparo-me para me agachar, apanhando a senha e mostrando-a depois ao senhor, não fazendo mais nada do que um simples sorriso. Ouço um "taranran". Os dois senhores executam um pequeno sobressalto e levantam-se. Um deles pisa a senha e quando volta a levantar o ´pé a senha já lá não está. Eu estico o braço e gaguejo. Fico a olhar para o pé do senhor a andar, com um F36 sorridente a acenar-me por baixo do mesmo. Tenho tendência a segui-lo doentiamente. Esqueço as fantasias e vou atrás do senhor. Calmamente, abordo-o, com um olho nele e outro na senhora de sorriso psicótico que está ao lado dos meus bens pessoais:
- Desculpe, pode só levantar o pé?
- Desculpe? (o seu colega faz nitidamente um grande esforço para não desmanchar a rir)
- Só preciso que levante o pé, mais nada. (dei por mim a falar à CSI, parecia que se tratava de um crime e não de uma senha)
- Mas porquê?
- É que a minha senha estava no chão, ao pé de si, e você pisou-a.
- Ahahah, a sério? Agora mesmo?
- -_-. Sim. Posso só então arrancar a senha do seu sapato? (digo isto como se uma espátula fosse precisa. Está toda a gente a olhar para mim e eu estou vermelho.)
O homem levanta o pé, eu ajoelho-me e arranco a senha que sofre mazelas durante a cirurgia. Com um sorriso, agradeço ao senhor e sigo triunfantemente para o meu lugar. Ignoro que a senha esteve 2 minutos numa sola de sapato imunda, e agarro-a com toda a força. Cinco minutos mais e deu-se o  meu "taranran". Sou atendido. Saio das finanças e vou em direcção à minha mota. Tento lembrar-me do que tinha acabado de fazer e não tenho nada na memória que me indique que dei a senha à funcionária.
Meto a mão no bolso.
A senha está lá.

3 comentários:

  1. hahahahaahahahahha quer dizer andaste tu por-te de joelhos perante um homem de negócios para depois nem dares a senha à senhora... gostava de ser mosca para ter lá estado a ver isso....

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