quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

O Polí cia António e o Funil de Ouro

Hoje o meu dia começou às 6.15, tal como em outras seis ocasiões desde há algumas semanas para cá. Tenho aula de condução às 7:00 com o Leonardo, o melhor instrutor que uma pessoa que nunca pegou num carro pode pedir. Levanto-me. Custa largar o quentinho da minha cama, custa lutar contra a força sobrenatural que os meus olhos fazem para se fecharem, custa, mas acaba por valer a pena. Saio de casa depois de uma torrada e um café com leite muito rápidos e enfrento a noite que está a acabar, juntamente com a minha grande e barulhenta companheira de duas rodas, deixando o frio e a brisa matinal acordarem o que ainda resta de mim adormecido.

Chego ao local onde todos os alunos se encontram com os seus instrutores, um recinto quase circular, cercado por um muro que me dá pela cintura e onde os ténis, em dias de chuva, escorregam facilmente pelas pedras da calçada que são o chão daquele recinto banal e comum. São 7.05, o Leonardo está atrasado, não faz mal, vou sentar-me no muro.

Após sentar-me olho para a entrada do recinto. Conseguem imaginar um funil? Lembrei-me agora que aquele recinto é exactamente como um funil. Na estreita entrada do recinto estava um homem que percorre decididamente e sem se cansar o curto caminho que separa uma extremidade da entrada do funil da outra. Curvado, com as mãos atrás das costas, aquele homem executava passos tão precisos que nunca poderiam ser uma simples casualidade, tinham de ser premeditados. Um constante conjunto de seis passos, era a distância compreendida entre as duas extremidades. Quase que apostava que ele repetia aquilo que parecia ser uma obrigação, um desafio, o dia inteiro, sem cessar. Parecia que estava alguém a observa-lo, a contar os seus passos e que o mandava embora se ele falhasse uma única sequência de passos que fosse.

O homem era alto, vestia um uniforme azul escuro, um escuro que poderia perfeitamente ser sujo. O seu chapéu era estranho, era a cópia autêntica de um barco de pesca em ponto pequeno e feito em pano. Calçava umas botas pretas, iguais às que se usam na tropa, altas, que cobriam parte das calças do seu uniforme azul sujo. As mãos, coladas às suas costas, tinham vestidas umas luvas brancas. No lado direito do seu peito estavam inscritas em ponto grande as letras "POLI". Faltava o "CIA", pensei eu, uma parcela da palavra que fora perdida com o tempo, afinal de contas o uniforme era aparentemente velho. Mas o que faltava na palavra, era compensado com a atitude do POLI CIA que estava ali mesmo à minha frente. Seja o que for que ele estava ali a fazer àquela hora, uma coisa era certa, ele era responsável por aquele funil, pela segurança daquele funil, e ele guardava-o como se fosse uma mina de ouro. Lembro-me de o ver guardar o funil de ouro uma vez por volta das 20:00 ou 21:00. Passará lá, ele, o seu dia inteiro? Junto a si, na entrada do funil de ouro, estavam cinco pinos que ocupavam o mesmo espaço que ele percorria em seis passos e que ele retirava orgulhosamente cada vez que alguém queria entrar no funil de ouro. Fá-lo-ia sentir-se importante? Precisaria ele de se sentir importante?

Eram 7:12 quando o POLI CIA veio ter comigo, olhou para mim e esboçou um sorriso. A sua cara era estranha e adequava-se àquela altura da manhã. As cicatrizes que transportava pareciam ser muito pesadas, elas que nasceram certamente após muita "vida" ter passado por aquele olhar. O seu sorriso revelava alguns dentes tortos e descuidados. Mesmo antes de falar, eu percebi que aquele homem não conseguia falar tão fluentemente como qualquer pessoa. Por entre tropeções linguísticos e atrapalhações, perguntou-me "espera do leonardo?". Eu demorei alguns segundos a responder, não sei porquê, pois tinha percebido tudo o que ele disse de imediato. Acabei por responder "sim, sim, estou a espera do Leonardo, obrigado". Virou costas e mostrou-me as luvas brancas coladas à zona do seu coccis, voltando apressadamente para a entrada do funil de ouro.

O Leonardo não se costuma atrasar. Comecei a colocar em causa o que tinhamos combinado. Ultimamente tenho colocado em causa a minha memória demasiadas vezes, estarei assim tão mal? Procurei algo que me desse a certeza de que hoje era quinta-feira e que eram às 7:15, e ainda algo que me fizesse lembrar que eu tinha marcado uma aula com o Leonardo hoje, quinta-feira, às 7:00. Não consegui, juro que não, precisava de saber com toda a certeza que dia era hoje. O relógio ficou em casa e o telemóvel também. Dirigi-me à entrada do funil de ouro e perguntei ao homem que dia era hoje. Ele voltou a virar-me as costas e a mostrar-me as luvas brancas coladas à zona do seu coccis e foi-se embora. Ele foi-se embora, deixou de guardar o seu precioso funil de ouro... Não percebi aquela atitude, será que tinha interrompido alguma das suas sequências de passos? Será que ele não me ouviu e simplesmente foi "ali e já vem"? Pensei mal dele por breves segundos, lembro-me de me passar pela cabeça a seguinte frase: "tanta coisa e afinal não passa de mais um maluco". Odeio pensar que fui tão básico neste meu pensamento.

Mais cinco minutos passaram e o Leonardo chegou com o carro que poucos momentos depois seria eu a conduzir. Ele sai do carro, cumprimenta-me com um sorriso e desculpa-se pelo atraso. Eu coloco as minhas coisas no banco de trás e começo a procurar, cabisbaixo, o cartão das aulas de condução na minha carteira. Ouço o Leonardo falar. As palavras dele dirigiam-se ao POLI CIA: "Então António? Tás Bom? Tá Tudo Bem?" O POLI CIA, agora António, esboçou um enorme sorriso e acenou afirmativamente com a cabeça. Depois disso, deu a volta ao carro e parou ao pé de mim, curvado e com as mãos atrás das costas. A partir dali, tive a certeza que não era defeito, era feitio. Olhou-me penetrantemente nos olhos e desta vez com um sorriso ainda maior. Eu guardei a carteira no bolso e a seguir ouvi-o dizer algo que por entre os tropeções e as atrapalhações pareceu ser: "Quinta-feira, 10 de Dezembro de 2009"



Fogo...
Obrigado António.

1 comentário:

  1. LOL grande história.... real, é certo, mas com contornos surreais....

    Ass:
    Paulinho Fernandes

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